Frida Khalo me persegue – Crusoé
Publicado originalmente na revista Crusoé, 31 de maio de 2019.
Não sou dado a paranoias ou manias de perseguição, pelo menos não acima da média das maluquices humanas. Mas, leitor, tenho achado que Frida Kahlo me persegue.
Saio de casa. A vizinha entra no elevador com uma cadela: “vem, Frida, vem!”. Como um inocente pastel na feira. Uma jovem dona de casa me atinge com sua sacola – estampada com o rosto e as sobrancelhas contínuas da pintora mexicana.
A caminho do trabalho, na rua Oscar Freire, em São Paulo, a foto de uma loira com pouca roupa me lembra que nem tudo é sofrimento neste mundo. Ao lado dela, um painel de quatro metros de uma Frida Kahlo com bigode corta o meu barato.
“Escrever sobre Frida Kahlo”, anoto no celular. Erro terrível: o Google entende que estou interessando na dita-cuja. Entro no Instagram para passar o tempo e ele me exibe anúncios relacionados. “Quatro quadros de Frida Kahlo por R$ 59,90”. Um vaso em forma de xícara para plantas suculentas com o retrato da pintora. Uma Barbie Frida Kahlo!
Uma Barbie vestida de Frida Kahlo é como uma miniatura de Lamborghini fantasiada de Fiat 147.
Frida Kahlo era feia. Tinha sobrancelhas feias. Defendia o comunismo, uma ideologia feia. Pintava quadros te-ne-bro-sos, uma espécie de semi-surrealismo com homenagens a Marx. Teve um relacionamento feio com Diego Rivera (feio). Então por que toda essa obsessão com Frida Kahlo?
Minha hipótese: o feio é o novo bonito. A beleza tradicional da arte clássica, o rosto simétrico, os nus impecáveis ficaram para trás. A moda hoje são as fotos de jovens orgulhosamente acima do peso, o nariz papagaial, a beleza oculta do Largo da Batata. O rosto de Frida Kahlo é a bandeira de declaração de guerra à beleza tradicional. A culpa por estarmos sozinhas não é nossa, dizem as ressentidas, mas dos “estereótipos de beleza propagados pela mídia”.
Só tem uma coisa que me aterroriza mais que Frida Kahlo: o Abaporu, de Tarsila do Amaral.
Tomei coragem e fui esta semana à exposição de Tarsila no Masp. Com alguma benevolência, até simpatizo com ela. Certamente não teria tanta importância se não fosse próxima dos modernistas de 1922, mas tudo bem. Traduziu o modernismo europeu ora sem convicção, ora com criatividade. “Cidade – A rua” é pior que qualquer Romero Britto. “Urutu” (o rosto em forma de ovo enrolado por uma serpente) é melhor que muito Magritte da mesma época.
Mas o Abaporu não dá. O Abaporu é assustador. Millôr Fernandes se intrigava com a “admiração acrítica unânime” que recebia o “o quadro mais feio do mundo”.
A própria Tarsila do Amaral sabia do potencial assustador da obra. “Eu quis fazer um quadro para assustar o Oswald [de Andrade]”, contou ela numa entrevista. “Quando viu o quadro, o Oswald ficou assustadíssimo e perguntou: ‘Mas o que é isso? Que coisa extraordinária!”
O Abaporu costuma ficar exposto na Argentina. Que ótimo presente de grego demos aos hermanos, penso sempre que me lembro desse fato. São obrigados a conviver com aquela coisa, e isso é tão doloroso quanto ter Cristina Kirchner como política. Mas agora o Abaporu está passando uns meses no Masp, ou seja, a três quilômetros da minha casa. Mais um motivo para não pôr o pé para fora.
Não gosto de sobrancelhas desproporcionais, não gosto de pezões e cabecinhas. Talvez alguém se ofenda com isso; não posso fazer nada. Como diz o lema que me aparece quase todo dia em algum adesivo de poste: “Não me Kahlo”.